Um filme-ensaio. Um filme
que aceita livremente o desafio de testar os caminhos pelos quais uma
ideia pode ser expressada. Um filme que experimenta as relações
entre imagem e som, entre imagem e imagem e entre som e som. Um filme
que arranha a retina com sequencias de películas granuladas,
nostálgicas e agressivas a limpeza e ao hiperrealismo do cinema
digital de hoje. Cinema armado e apontado para si mesmo, forçando-se
a extrapolar seus limites. Sequestrador de luz, de signos, mas também
sequestrado por usa própria pretensão. Essas são respostas,
bastante provisórias, que apresento antes da pergunta: “o que
achaste do filme?”.
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Imagem retirada do site: pinacotecamoderna.com.br |
O filme é “Mr.
Sganzerla”, de Joel Pizzini. Película que emula, em sua poética,
princípios do cinema tal qual ele era entendido por seu biografado:
“cinema é montagem”, “cinema é arma e escudo”. Aliás,
“biografado” não é um termo muito adequado ao que o filme faz
com seu “protagonista” (outro termo que não vai bem). Parece ser
mais honesto com o leitor dizermos que o filme não trata da vida de
Sganzerla, mas sim de como o cinema acontecida em sua cabeça.
“Comecei a fazer cinema com uma máquina de escrever”, diz o
cineasta maldito em uma das passagens do filme, ao se referir a
precariedade de suas condições iniciais de trabalho e a falta de
acesso aos equipamentos necessários para transformar sua escrita
transgressora em cinema.
Pizzini nos apresenta um
filme que acontece baseado em dois conceitos muito fortes: pesquisa e
montagem. Com a pesquisa ele e sua equipe fizeram uma verdadeira
arqueologia do material audiovisual existente sobre Sganzerla: são
áudios, fotos, filmes caseiros, cenas de filmes, interações,
entrevistas. Um trabalho que parece ter sido exaustivo (vide créditos
finais do filme), mas também fortemente necessário a proposta que o
diretor buscou imprimir nesse trabalho. Com a montagem, Pizzini
conecta, relaciona, aproxima, mistura falas, pessoas, imagens, sons e
mesmo geografias que, originalmente, estavam dissociadas umas das
outras, cada qual em um arquivo, como que esperando a hora de
germinar.
Se o filme não é muito
amigável como um todo, em seus primeiros minutos é menos ainda. Ele
exige um fruidor que reconecte os fragmentos, que se movimente na
narrativa construindo, de acordo com sua própria lógica,
inferências a respeito das referências que lhe são apresentadas.
Dá trabalho assistir a “Mr. Sganzerla”.
Quando Pizzini começa a
nos mostrar, sem assim o dizer, as matrizes discursivas de Sganzerla
e de seu cinema: Orson Welles, Noel Rosa, Jimi Rendrix, Oswald de
Andrade, o filme vai ficando mais amigável. O fato, por exemplo, de
o diretor ter sido um assíduo frequentador da subversiva “Boca do
Lixo” é uma informação importante para compreender várias
facetas de sua produção, mas aparece apenas como um indício no
filme, trazido por alguns inserts de letreiros luminosos e na presença de Zé do Caixão. Assim, o
público que não tiver a referência previamente, pode não
relacionar Sganzerla a efervescência cinematográfica da Boca do
Lixo, reforçando uma fala do próprio cineasta no filme: “quem não
entendeu, jamais entenderá”.
Essa declaração aliás,
apesar de relativamente descontextualizada, nos reporta a uma faceta
do cinema brasileiro após o declínio da pornochanchada: o “Cinema
marginal” (ao qual Sganzerla pode ser vinculado) e o Cinema Novo
fizeram muito mais sucesso no exterior, notadamente Europa, do que no
Brasil e isso parece ter inquietado tanto Sganzerla quanto Glauber
Rocha. O fato é que o cinema extrema e assumidamente intelectual de
ambos exigia do público brasileiro (que vinha de décadas de
chanchada e pornochanchada) um repertório que ele não poderia ter
em função da trajetória histórica e social do país. Ainda hoje,
a excelente produção cinematográfica de ambos, se for exibida
mesmo nas capitais brasileiras, será de difícil digestão para o
público. Isso não é uma crítica às opções cinematográficas de
ambos, mas é uma explicação até óbvia para o fato desse cinema
repercutir mais na Europa do que no Brasil da década de 1970, 1980.
Em todo caso, o
iconoclasta Sganzerla, cinematografado pelo iconoclasta Pizzini que
também fez a curadoria da restauração de filmes do iconoclasta
Glauber Rocha e organizou mostras do cinema iconoclástico de Jodoroswsky, mostra uma energia rara em sua produção e uma potência
presente apenas nas falas que são convictas do que dizem. Assistindo
ao filme, quem não entendeu, poderá entender.
*Texto escrito por Alexandre Brito para Mostra Iconoclássicos, do Itaú Cultural, realizada em Macapá pela Casa Fora do Eixo Amazônia, com apoio de Pium Filmes, Univercimena e Nufoc.
*Texto escrito por Alexandre Brito para Mostra Iconoclássicos, do Itaú Cultural, realizada em Macapá pela Casa Fora do Eixo Amazônia, com apoio de Pium Filmes, Univercimena e Nufoc.