29/04/2013

Do que é feito o cinema: efeito Sganzerla*


Um filme-ensaio. Um filme que aceita livremente o desafio de testar os caminhos pelos quais uma ideia pode ser expressada. Um filme que experimenta as relações entre imagem e som, entre imagem e imagem e entre som e som. Um filme que arranha a retina com sequencias de películas granuladas, nostálgicas e agressivas a limpeza e ao hiperrealismo do cinema digital de hoje. Cinema armado e apontado para si mesmo, forçando-se a extrapolar seus limites. Sequestrador de luz, de signos, mas também sequestrado por usa própria pretensão. Essas são respostas, bastante provisórias, que apresento antes da pergunta: “o que achaste do filme?”.
Imagem retirada do site: pinacotecamoderna.com.br

O filme é “Mr. Sganzerla”, de Joel Pizzini. Película que emula, em sua poética, princípios do cinema tal qual ele era entendido por seu biografado: “cinema é montagem”, “cinema é arma e escudo”. Aliás, “biografado” não é um termo muito adequado ao que o filme faz com seu “protagonista” (outro termo que não vai bem). Parece ser mais honesto com o leitor dizermos que o filme não trata da vida de Sganzerla, mas sim de como o cinema acontecida em sua cabeça. “Comecei a fazer cinema com uma máquina de escrever”, diz o cineasta maldito em uma das passagens do filme, ao se referir a precariedade de suas condições iniciais de trabalho e a falta de acesso aos equipamentos necessários para transformar sua escrita transgressora em cinema.

Pizzini nos apresenta um filme que acontece baseado em dois conceitos muito fortes: pesquisa e montagem. Com a pesquisa ele e sua equipe fizeram uma verdadeira arqueologia do material audiovisual existente sobre Sganzerla: são áudios, fotos, filmes caseiros, cenas de filmes, interações, entrevistas. Um trabalho que parece ter sido exaustivo (vide créditos finais do filme), mas também fortemente necessário a proposta que o diretor buscou imprimir nesse trabalho. Com a montagem, Pizzini conecta, relaciona, aproxima, mistura falas, pessoas, imagens, sons e mesmo geografias que, originalmente, estavam dissociadas umas das outras, cada qual em um arquivo, como que esperando a hora de germinar.

Se o filme não é muito amigável como um todo, em seus primeiros minutos é menos ainda. Ele exige um fruidor que reconecte os fragmentos, que se movimente na narrativa construindo, de acordo com sua própria lógica, inferências a respeito das referências que lhe são apresentadas. Dá trabalho assistir a “Mr. Sganzerla”.

Quando Pizzini começa a nos mostrar, sem assim o dizer, as matrizes discursivas de Sganzerla e de seu cinema: Orson Welles, Noel Rosa, Jimi Rendrix, Oswald de Andrade, o filme vai ficando mais amigável. O fato, por exemplo, de o diretor ter sido um assíduo frequentador da subversiva “Boca do Lixo” é uma informação importante para compreender várias facetas de sua produção, mas aparece apenas como um indício no filme, trazido por alguns inserts de letreiros luminosos e na presença de Zé do Caixão. Assim, o público que não tiver a referência previamente, pode não relacionar Sganzerla a efervescência cinematográfica da Boca do Lixo, reforçando uma fala do próprio cineasta no filme: “quem não entendeu, jamais entenderá”.

Essa declaração aliás, apesar de relativamente descontextualizada, nos reporta a uma faceta do cinema brasileiro após o declínio da pornochanchada: o “Cinema marginal” (ao qual Sganzerla pode ser vinculado) e o Cinema Novo fizeram muito mais sucesso no exterior, notadamente Europa, do que no Brasil e isso parece ter inquietado tanto Sganzerla quanto Glauber Rocha. O fato é que o cinema extrema e assumidamente intelectual de ambos exigia do público brasileiro (que vinha de décadas de chanchada e pornochanchada) um repertório que ele não poderia ter em função da trajetória histórica e social do país. Ainda hoje, a excelente produção cinematográfica de ambos, se for exibida mesmo nas capitais brasileiras, será de difícil digestão para o público. Isso não é uma crítica às opções cinematográficas de ambos, mas é uma explicação até óbvia para o fato desse cinema repercutir mais na Europa do que no Brasil da década de 1970, 1980.

Em todo caso, o iconoclasta Sganzerla, cinematografado pelo iconoclasta Pizzini que também fez a curadoria da restauração de filmes do iconoclasta Glauber Rocha e organizou mostras do cinema iconoclástico de Jodoroswsky, mostra uma energia rara em sua produção e uma potência presente apenas nas falas que são convictas do que dizem. Assistindo ao filme, quem não entendeu, poderá entender.

*Texto escrito por Alexandre Brito para  Mostra Iconoclássicos, do Itaú Cultural, realizada em Macapá pela Casa Fora do Eixo Amazônia, com apoio de Pium Filmes, Univercimena e Nufoc.

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